sábado, 7 de maio de 2022

Há muito que aprender com a CPI da Educação

Márcio Almeida

Em uma análise exclusiva, comento as suspeitas de superfaturamento em compras de material e equipamentos feitas pela Secretaria Municipal de Educação


Como diria o filósofo Jorge Ben Jor, estão enganados, puramente enganados, os que pensam haver um nó político a ser desatado no episódio da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada pela Câmara de Vereadores de Divinópolis para investigar suspeitas de irregularidades envolvendo compras de equipamento e material escolar pela Secretaria Municipal de Educação. Não se trata, de fato, de um nó: trata-se de três nós tensionando a política local e, por conseguinte, a administração pública.

Entre a ética e a técnica

O primeiro nó surgiu de uma mistura indevida entre técnica e ética. Não veio a público, até aqui, indício de que o prefeito Gleidson Azevedo, a secretária de educação, Andreia Dimas, ou qualquer membro da administração pública municipal, ao arrepio da ética, tenham buscado obter ou efetivamente obtido vantagem pessoal ao empregar cerca de R$30 milhões nas compras feitas no ano passado. Aliás, não se viu até o momento, pelo noticiário da mídia séria, qualquer agente político que sequer sugerisse isso. Da parte do vereador Ademir Silva, que levantou a questão, o que se viu foi um questionamento legítimo — e até esperado dos parlamentares, enquanto fiscalizadores — sobre aspectos técnicos relacionados às compras, envolvendo tanto os procedimentos licitatórios quanto os valores pagos por alguns dos itens licitados, assim como as suspeitas de que empresas participantes do processo licitatório tenham sócios em comum. 

O fato de não ter havido até aqui suspeição de vantagem pessoal não significa, obviamente, algo de menor importância, já que escolhas técnicas podem resultar em compras feitas de modo menos vantajoso do que seria possível e, por isso mesmo, lesar o interesse da municipalidade, desrespeitando, entre outros dispositivos, a eficiência no uso de recursos, que a Constituição de 1988 transformou em princípio da administração pública. Dito de outro modo: não precisa haver percepção de vantagem pessoal para que haja dano ao erário. A falta de eficiência, assim como a falta de conveniência e de oportunidade, já são suficientes para desabonar certos atos administrativos relacionados ao uso de recursos públicos. 

Entre prerrogativas e expectativas

O segundo nó da questão veio do descompasso entre prerrogativa e expectativa. Tendo sido nomeados os componentes da CPI, o vereador Edson Souza — a quem caberia dar início aos trabalhos na condição de parlamentar mais velho do grupo — recusou-se a fazê-lo sob a alegação de que as nomeações feitas pelo presidente da Câmara, Eduardo Print Júnior, não expressavam a devida representação do partido do prefeito Gleidson, de cujo governo o parlamentar é o líder no plenário. Assim, depois de ter colocado sua assinatura no requerimento que pedia a instalação da CPI, Edson passou a apresentar questões de intepretação do regimento interno que justificavam, a seu ver, o adiamento do início das atividades. Atendido em mais de uma ocasião pelo presidente da Casa, o vereador continuou a mostrar-se insatisfeito em suas declarações públicas. Dez dias depois, sem que a CPI tivesse iniciado seus trabalhos, o líder do prefeito ainda aparecia na mídia ora invocando questões regimentais, ora interpelando oralmente um servidor do gabinete de Ademir, em um episódio que terminou com uma ida da polícia à Câmara, ora anunciando sua intenção de processar judicialmente jornalistas e veículos de mídia que, a seu entendimento, haviam faltado com a verdade ao noticiar que ele não tinha dado início aos trabalhos investigativos, ora, ainda, afirmando estar convencido de que a atual legislatura será uma das piores da história. Ouviu-se então o que tanto era previsível quanto inevitável: um clamor, vindo de diversos segmentos da sociedade, para que a investigação enfim começasse.

Não é preciso grande esforço de análise para perceber que o hiato entre a divulgação das suspeitas e o início da organização dos trabalhos na CPI constitui um duplo descompasso. Primeiro, é um descompasso em relação à justa expectativa social de que suspeitas envolvendo compras de de R$30 milhões sejam investigadas sem delongas. Essa expectativa ficou especialmente premente depois de 2013, quando explodiu a profunda insatisfação em relação à classe política que hoje se verifica de norte a sul do país. Assim, retardar o início da busca de respostas para uma suspeita envolvendo recursos públicos iria fatalmente produzir, como de fato produziu, o estranhamento que tem sido visto nos últimos dias tanto na mídia quanto nas redes sociais, nas quais se vê uma legítima expectativa de transparência. Não custa lembrar que tal expectativa está na base do discurso que elegeu políticos como Gleidson. Antes e depois da campanha, ele vem insistindo em seu apoio à transparência. Em segundo lugar, portanto, percebe-se que o tempo decorrido entre a divulgação das suspeitas e a efetivação do início dos trabalhos de apuração pela Câmara está em descompasso com a pregação do próprio prefeito. 

Já é visível o que resultou desse descompasso entre prerrogativas regimentais e expectativas sociais. De um lado, na medida em que deixou o início da apuração em suspenso por vários dias, ele produziu o tempo necessário para que houvesse um compreensível aumento da pressão e da efervescência em torno do episódio na sociedade divinopolitana. De outro lado, criou o vácuo de liderança política que foi ocupado, de modo legítimo, pelo presidente da Câmara, Eduardo Print Júnior, na medida em que este apadrinhou publicamente a necessidade e a urgência da investigação. Ao destituir Edson Souza de sua participação na CPI, não sem antes concordar com outros ajustes de composição que ainda tentaram acomodar as reivindicações do líder do prefeito, Print Júnior criou as condições efetivas para que tenham início as desejadas apurações, das quais se tornou o fiador no Legislativo.

Entre questionar e julgar

Finalmente, o terceiro nó da questão envolvendo as compras de R$30 milhões feitas pela Secretaria de Educação diz respeito à confusão entre questionar e julgar. Desde que o vereador Ademir levantou suas primeiras suspeitas, em um trabalho parlamentar de inegável interesse público, na medida em que buscar saber como estão sendo empregados recursos do erário, o discurso da administração municipal e de alguns de seus apoiadores enveredou por uma estrada autocontraditória. Nesse sentido, fato digno de nota foi protagonizado pela secretária Andreia Dimas, que nesta semana aceitou comparecer a uma emissora, na companhia do prefeito, para “esclarecer os fatos” mesmo antes de a CPI ter concluído seus trabalhos, já que haviam sido feitas, segundo seu juízo, algumas divulgações incorretas que deveriam ser esclarecidas. 

Na entrevista, entretanto, diante de um questionamento sobre a grande diferença entre os preços de alguns itens pagos pela Secretaria de Educação no processo licitatório e os praticados pelo mercado, Andreia declarou ser preciso esperar a conclusão da CPI, sob pena de se fazer um pré-julgamento... Assim, a secretária que havia declarado minutos antes ter ido à emissora para “esclarecer os fatos” disse, afinal, que nada tinha a dizer de concreto sobre preços antes que os vereadores concluam seu trabalho investigativo. Ao misturar de modo sutil questionamento e julgamento e usar a mistura como justificativa para não responder a uma pergunta específica sobre discrepâncias de preços, a secretária conseguiu deixar pelo menos um ponto bastante claro: entre as interpretações possíveis de sua resposta evasiva encontra-se a de que ela precisa ser informada pelos vereadores sobre o que de fato se passou com um montante substancial de dinheiro público gerido pela pasta da qual é a gestora. Pode não ter sido isso que Andreia quis dizer com sua recusa a responder a uma pergunta específica. Porém, ouvintes e telespectadores terminaram na dúvida, pois, no fim das contas, a secretária muito pouco esclareceu sobre os fatos que, ao iniciar a entrevista, havia se disposto a esclarecer. 

E não foi essa a única incongruência, nem esse o único motivo de estranhamento para quem se dispôs a acompanhar as notícias a respeito do episódio publicadas nos últimos dias. Tanto o prefeito Gleidson quanto seu irmão, o vereador Eduardo Azevedo, em falas também registradas pela mídia, oscilaram entre polos antagônicos. De um lado, disseram-se favoráveis à apuração dos fatos pela CPI, desde que sem pré-julgamento, e à punição de eventuais responsáveis por atos lesivos ao erário, caso tenham existido tais atos. De outro lado, fizeram eles próprios um pré-julgamento e afirmaram, antes que a CPI sequer tenha iniciado oitivas e análise de documentos, que as suspeitas levantadas não passam de uma tentativa de desestabilização da administração com finalidade eleitoral. Por outras palavras, disseram que não é justo que a administração e seus apoiadores sejam previamente julgados, mas é justo que eles prejulguem as suspeitas antes de elas serem investigadas, atribuindo-as, sem apresentar provas, a uma manobra eleitoral...

Entre emoção e razão        

Os três nós que agora se juntam para tensionar o episódio das suspeitas de superfaturamento nas compras da Secretaria de Educação não representam, embora possa parecer, apenas um momento especialmente polêmico da política local. Politicamente, como já fico óbvio para quem observa os fatos, eles são um marco divisório. Assinalam o início da segunda fase do governo do prefeito Gleidson Azevedo. Nesta fase, quando o calor da campanha já abrandou, surgem os percalços que costumam apresentar-se diante dos gestores e de seu grupo de apoio e que devem ser por eles enfrentados de modo incontornável para que a administração pública possa seguir adiante em suas finalidades. Nesse sentido, o episódio das compras feitas pela Secretaria de Educação é pedagógico. Ele está ensinando que é preciso aperfeiçoar o nível da resposta institucional aos problemas, equilibrando a emoção com uma dose de razão no encaminhamento de soluções.

O que se viu até agora é pouco animador para essa perspectiva de equilíbrio. Da parte do líder do prefeito, Edson Souza, o episódio já rendeu uma discussão de corredor, com direito à convocação da polícia à Câmara, anúncios de processo judicial contra jornalistas e veículos de mídia e uma generalizante fala pública em que o parlamentar avaliou a atual legislatura, ainda no primeiro semestre de seu segundo ano, como uma das piores da história divinopolitana. Da parte do prefeito Gleidson, para ficar só na mesma entrevista de que participou a secretária de educação, o caso produziu até aqui uma descarga emocional situada muito além dos limites da liturgia do cargo, do decoro republicano e, afinal, da compostura que o próprio Edson Souza, seu líder no plenário, costuma pregar em sua constante apologia da ética na vida pública. 

Dirão alguns que os homens públicos, não sendo máquinas, terão às vezes seus arroubos, como ocorre a todos os demais. Isso é verdadeiro. É tão verdadeiro, porém, quanto a constatação de que, justamente por serem homens públicos, devem se esforçar por aprender a resolver problemas usando o idioma da troca racional e construtiva de ideias. Afinal, entre gritos, respostas evasivas, ocorrências policiais, ameaças à mídia, ataques generalizados ao corpo legislativo e acusações sem prova de supostas manobras eleitorais, o que se corrompe é a capacidade da política de oferecer respostas às demandas concretas da sociedade divinopolitana. Contribuintes, empreendedores, trabalhadores, eleitores e cidadãos esperam mais. 


Márcio Almeida é professor, escritor e analista político em Divinópolis.